domingo, 27 de janeiro de 2013

Cicatrizes


Vocês sabem que sou um cara muito atento com as coisas que rolam ao meu redor.
Como apareceu um coceirinha na minha bochecha e cocei demais, fiquei com uma marquinha. Olhei no espelho e... nossa!!! Vai ficar uma cicatriz. Me senti o próprio “Scarface”, um  filme de grande sucesso que assisti. Fiz até cara de mau (rsrsrs).
E como uma coisa leva a outra, pensei na minha vida e aí, como se fosse um filme, as lembranças surgiram e com elas os sentimentos agregados e com eles, as cicatrizes.
Pensando pontualmente no ano passado: Que ano de lutos, perdas...
Começamos o ano saindo de um trabalho de terapias assistidas junto a uma ONG que participamos desde o inicio na sua fundação, constituição, etc. Foram quatro anos de trabalho muito duro para que ela se tornasse referência. Conseguimos, mas infelizmente parece que os humanos são bem complicados e algumas pessoas se sentiram incomodadas. Era hora de virar a página. De repente, nos vimos sem o nosso trabalho que tanto amávamos, sem os “amigos” e principalmente, sem os assistidos. Foi cruel e muito difícil. Mais uma ferida para ser cicatrizada...
Mas minha mãe humana acredita que quando algo ruim acontece sempre uma coisa boa está por surgir.
Ela estava certa. Após um tempinho, estávamos nós com uma nova ONG de terapias assistidas, sem deixar de carregarmos as nossas feridas já cicatrizadas, que nos garantem indispensáveis experiências.
O sentimento de perda foi superado por este recomeço, com novos parceiros, mais força, garra, pessoal mais técnico e mais dedicado. 
Depois foi a vez de minha avó humana partir. Quanta dor...
Cá entre nós, eu era seu queridinho, na verdade, sua queridinha. Ela sempre achou que eu era uma menina, me chamava de “Branquinha” (rsrsrs). Eu nem ligava. O importante era receber sua atenção e carinho.
Mas com ela a perda foi mais lenta, gradual. Ela foi embora lentamente. Um dia deixou de me fazer carinho, em outro, esqueceu meu nome e depois não se dava conta da minha presença. Mesmo triste, eu nunca deixei de ficar ao seu lado um único instante. O amor era maior. Ainda sinto seu cheiro, sua presença. A sua risada ainda ecoa nas minhas lembranças e sonho com ela. Foi um momento muito triste na minha casa. Apesar dela não ser mais a mãe de outrora, tudo que ela tinha representado até então se foi, e para sempre. Mais uma cicatriz, mais um aprendizado.
E novamente, minha mãe humana, apesar da tristeza, acreditou novamente que quando algo ruim acontece sempre uma coisa boa está por surgir.
Disse que precisávamos aprender a gostar de nós mesmos, aprender a ser feliz.
E estamos empenhados nisto.
Baseado nestas experiências de perda/luto quis entender melhor sobre este sentimento.
Vocês sabem que participo de algumas sessões psicoterápicas com minha mãe. Passei a gostar pra caramba do Freud, principalmente quando soube que sempre atendia acompanhado de um cão. Esse cara era demais!
Resolvi verificar o que escreveu em “Luto e Melancolia” (1917).
Segundo Freud, “...O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos que  essas pessoas já possuem uma disposição patológica”.
Ele traça uma diferença fundamental entre as duas formas de perda, ou seja: “... Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele. Os traços mentais distintivos da melancolia são: um desânimo profundamente penoso, a ceção de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da autoestima está ausente no luto; fora isso, porém, as características são as mesmas”.
Pelo que entendi, sem entrar em questões mais profundas (afinal, sou apenas um Cão Terapeuta), no luto, toda a perda do investimento libidinal no objeto é externa, enquanto que na melancolia fica internalizado. Complicado, né?
Na verdade, cada pessoa tem um processo individualizado de elaboração, que varia de acordo com sua estrutura interna.
Todos passam por um turbilhão emocional, sentimentos conflitantes, profundos e dolorosos de perda irreparável, que nada poderá substituir aquela dor e o vazio.
É normal e importante passar por este processo, pelos sintomas de enlutamento, entre eles, entorpecimento, culpa, raiva, etc., senão ficará tudo reprimido e, pelo que entendi, aí fica complicado, torna-se patológico.
Somente após toda esta trajetória, ou seja, que a elaboração seja vivenciada, em maior ou menor grau, de acordo com cada indivíduo, é que se dará a superação e a cicatrização.
Novos vinculos se formarão com o que se foi e com o novo que surgirá.
Olho novamente para o espelho, para minha cicatriz e percebo que agora entendi melhor minha mãe humana. Sempre que uma porta se fecha, outra se abrirá, apesar das cicatrizes.
Estas representam a certeza das minhas experiências e que estou cada vez mais preparado, mais forte, mais amadurecido para as novas oportunidades que me farão evoluir sempre.