Vocês sabem que sou um cara muito
atento com as coisas que rolam ao meu redor.
Como apareceu um
coceirinha na minha bochecha e cocei demais, fiquei com uma marquinha. Olhei no
espelho e... nossa!!! Vai ficar uma cicatriz. Me senti o próprio “Scarface”, um filme de grande sucesso que assisti. Fiz até
cara de mau (rsrsrs).
E como uma coisa leva a outra,
pensei na minha vida e aí, como se fosse um filme, as lembranças surgiram e com
elas os sentimentos agregados e com eles, as cicatrizes.
Pensando pontualmente no ano
passado: Que ano de lutos, perdas...
Começamos o ano saindo de um
trabalho de terapias assistidas junto a uma ONG que participamos desde o inicio
na sua fundação, constituição, etc. Foram quatro anos de trabalho muito duro
para que ela se tornasse referência. Conseguimos, mas infelizmente parece que
os humanos são bem complicados e algumas pessoas se sentiram incomodadas. Era
hora de virar a página. De repente, nos vimos sem o nosso trabalho que tanto
amávamos, sem os “amigos” e principalmente, sem os assistidos. Foi cruel e
muito difícil. Mais uma ferida para ser cicatrizada...
Mas minha mãe humana acredita que
quando algo ruim acontece sempre uma coisa boa está por surgir.
Ela estava certa. Após um
tempinho, estávamos nós com uma nova ONG de terapias assistidas, sem deixar de
carregarmos as nossas feridas já cicatrizadas, que nos garantem indispensáveis experiências.
O sentimento de perda foi
superado por este recomeço, com novos parceiros, mais força, garra, pessoal
mais técnico e mais dedicado.
Depois foi a vez de minha avó
humana partir. Quanta dor...
Cá entre nós, eu era seu
queridinho, na verdade, sua queridinha. Ela sempre achou que eu era uma menina,
me chamava de “Branquinha” (rsrsrs). Eu nem ligava. O importante era receber
sua atenção e carinho.
Mas com ela a perda foi mais
lenta, gradual. Ela foi embora lentamente. Um dia deixou de me fazer carinho,
em outro, esqueceu meu nome e depois não se dava conta da minha presença. Mesmo
triste, eu nunca deixei de ficar ao seu lado um único instante. O amor era
maior. Ainda sinto seu cheiro, sua presença. A sua risada ainda ecoa nas minhas
lembranças e sonho com ela. Foi um momento muito triste na minha casa. Apesar
dela não ser mais a mãe de outrora, tudo que ela tinha representado até então se
foi, e para sempre. Mais uma cicatriz, mais um aprendizado.
E novamente, minha mãe humana,
apesar da tristeza, acreditou novamente que quando algo ruim acontece sempre
uma coisa boa está por surgir.
Disse que precisávamos aprender a
gostar de nós mesmos, aprender a ser feliz.
E estamos empenhados nisto.
Baseado nestas experiências de
perda/luto quis entender melhor sobre este sentimento.
Vocês sabem que participo de
algumas sessões psicoterápicas com minha mãe. Passei a gostar pra caramba do Freud,
principalmente quando soube que sempre atendia acompanhado de um cão. Esse cara
era demais!
Resolvi verificar o que escreveu
em “Luto e Melancolia” (1917).
Segundo Freud, “...O luto, de modo geral, é a reação à
perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar
de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por
diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de
luto; por conseguinte, suspeitamos que
essas pessoas já possuem uma disposição patológica”.
Ele traça uma diferença
fundamental entre as duas formas de perda, ou seja: “... Também vale a pena
notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a
atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição
patológica e submetê-lo a tratamento
médico. Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo e julgamos inútil
ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele. Os traços mentais
distintivos da melancolia são: um desânimo profundamente penoso, a ceção de
interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de
toda e qualquer atividade, e uma diminuição
dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em
auto-recriminação e auto-envilecimento,
culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco
mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os
mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da autoestima está ausente
no luto; fora isso, porém, as características são as mesmas”.
Pelo que entendi, sem
entrar em questões mais profundas (afinal, sou apenas um Cão Terapeuta), no
luto, toda a perda do investimento libidinal no objeto é externa, enquanto que
na melancolia fica internalizado. Complicado, né?
Na verdade, cada
pessoa tem um processo individualizado de elaboração, que varia de acordo com
sua estrutura interna.
Todos passam por um
turbilhão emocional, sentimentos conflitantes, profundos e dolorosos de perda
irreparável, que nada poderá substituir aquela dor e o vazio.
É normal e importante
passar por este processo, pelos sintomas de enlutamento, entre eles,
entorpecimento, culpa, raiva, etc., senão ficará tudo reprimido e, pelo que
entendi, aí fica complicado, torna-se patológico.
Somente após toda esta
trajetória, ou seja, que a elaboração seja vivenciada, em maior ou menor grau,
de acordo com cada indivíduo, é que se dará a superação e a cicatrização.
Novos vinculos se
formarão com o que se foi e com o novo que surgirá.
Olho novamente para o
espelho, para minha cicatriz e percebo que agora entendi melhor minha mãe
humana. Sempre que uma porta se fecha, outra se abrirá, apesar das cicatrizes.
Estas representam a
certeza das minhas experiências e que estou cada vez mais preparado, mais
forte, mais amadurecido para as novas oportunidades que me farão evoluir
sempre.